segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

O "depois" da infância: a jovem

Divago, de vagar e diferente-mente. Volto aqui depois de tanta ausência, 2019? 

Como se passam os anos? que tempo que correria que enfado que lugares me chamam de sítios tão recuados? Todos os dias me lembro deles: a avó, a mãe, o pai. Da avó os gestos do dia a dia, mexer a sopa, estender a roupa, o "não deixes para amanhã o que podes fazer hoje". A sabedoria, o afecto, o sorriso da bondade, o avental. Do casal que me formatou a vida - eu deixei? - o redemoinho das imagens, a minha mãe em aflição, mulher sempre em segundo plano, uma forma de "esconder" sentimentos que eu herdei, bem o sei e bem o sinto; dele, o gosto pela Natureza e... enfim, tenho de "compreender" porquê se fixava o meu pai na pequena-menina e na pequena-mulher ... a maldade, a severidade. Que são coisas diferentes, bem o sentia.

Escrevia há dias o que muitas vezes penso e digo: se recomeçasse a minha vida faria (quase) tudo diferente. Desde a "Ingénua", como alguém me desenhou e me chamava. Se procuro nomes ou lugares, o passado parece-me apenas um refluxo de maré vaza, lixo esquecido no areal. Coisas bonitas? sim, mas especialmente porque eu as fiz, as criei, as ia inventando. Os meus segredos.

Lembrança. Foi a propósito da menina-única ter ido agora ao Portugal dos Pequenitos, a Coimbra.

Uma vez, já no início da adolescência, não sei que anos teria: fui com o meu pai e amigos (o Neca...), acampar, à boleia, como sempre. Sei que passámos em Tentúgal e lembro-me do pastel folhado que comi. E, nessa área estando, fomos ver a obra de Bissaya Barreto, inaugurado em Junho 1940, o espaço "pedagógico e lúdico" para as criancinhas conhecerem o Mundo Português. Do Minho a Timor, como diziam nesses tempos obscuros e tal qual o mapa das escolas públicas. Das poucas fotos que tenho - que nos tiravam - estou a rir-me, a espreitar de uma janela típica da arquitectura portuguesa. Vi agora que o projecto foi levado a efeito pelo arquitecto Cassiano Branco.

Suponho que foi dessa vez que apanhámos boleia e andámos todos numa camioneta de caixa aberta. E eu tinha muita fome porque não havia lanches e paragens para meninas... Lembro-me (a tal ingenuidade) do meu pai me apontar os fios de electricidade e me dizer "Estás a ver o tacho a passar pelos fios?". Devia ter ficado confusa e calei-me, com esta tirada dele. Que as tinha, muitas.

Mas hoje não estou com vontade de continuar, breve virá o tempo de "Salgueiros" e uma vida completamente diferente.
 


terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Recordar Tempo 8

Deixei os últimos anos para o fim das coisas e lembranças variadas.
Não tenho mais desenhos meus, eu que tanto gostava de desenhar e pintar; não tenho redacções que sempre eram lidas em voz alta nas aulas; não tenho ditados nos quais raramente dava erros; não tenho escritos que de muito nova escrevia: o meu pai uma vez rasgou tudo, furioso por eu escrever "verdades pouco confortáveis". Nem as mil e uma coisas de trabalhos manuais, colagens e invenções. Nem dos bordados que de começados nunca eram acabados...
A orientação religiosa, por mais que o Reinaldo a evitasse, era uma constante nas escolas. E eu escapei-me muitas vezes para as igrejas, para ver, para saber e para estar sossegada. Pelos 11/12 anos tive uma epifania, rodeada de "aura mística". De qualquer modo, sabia de novinha as orações todas, o catecismo era mais uma história para conhecer. Havia uma Biblía antiga em casa, o que eu gostava de ler o Antigo Testamento e aquelas descrições e nomes de encantar!
Outra das minhas fortes atracções, ainda hoje o é, foram as histórias da mitologia e tudo o que relacionasse com a Grécia ou o Egipto. O meu "Atlas", com constelações, países, e ilustrações de paisagens e aspectos do mundo, era incessantemente visto: ainda o tenho. Espantosas mudanças vejo hoje.




Estas eram as festas de Natal dos Correios, Telégrafos e Telefones, onde davam um modesto presente "para os filhos dos empregados". De algumas festas a que fui, tenho apenas estas fotografias, a cantar. Ah... como eu gostava de cantar! Uma era "Nazaré" - olha a Nazaré e o mar...- a outra era uma brasileira, um samba "Chegou a hora, chegou, chegou..."
No ensaio
E actuando, com um fato de vianesa ??? que se alugou para o efeito

Todo o grupo de crianças e ensaiadores em palco. A minha saia era de pregas, aos quadrados vermelhos e a camisola vermelha também.

***
Dividida por décadas, cada uma com fascículos muitos diferentes, assim foi e reconheço a minha vida.
Iríamos, pouco tempo depois, viver para Salgueiros, a algumas centenas de metros da praia.
Esse horizonte imenso - já não existe - de pinheirais, de marés, penedos e dunas, onde se desenrolou parte da minha conturbada e trabalhosa adolescência.
***
Não foi nessa época mas um pouco mais tarde. Contudo, veio-me à lembrança um livro em especial "Lâmpada que não se apaga, Mme Curie". Foi-me dado de presente pela minha professora de Português, no 2º? ano do liceu, a professora Arlete, que muito gostava de mim e das minhas redacções. Encontrei-a muito mais tarde, aqui perto e falámos: reconheceu-me!



Recordar Tempo 7

Brincava pouco com as crianças do bairro, não me deixavam andar na rua, a não ser com tempo vigiado e controlado. Jogava às escondidas, "a patela", o bom-barqueiro, à corda-queimada, o anel rodando numa corda. Às casinhas.
Dava-me bem com a Glória mas diziam que era uma miúda muito mentirosa. Mesmo quando a encontrei mais tarde, assim parecia ter ficado..
Gostava muito da Marietinha, mais velha que eu mas uma moça excelente; e esta tinha sempre palavras e livros, bons.
Havia os cortejos de Carnaval dos Fenianos ou da Queima das Fitas, passavam perto de casa, na ida para o Palácio: íamos assistir do passeio do jardim. Uma festa para a multidão que via ou acompanhava os carros enfeitados! Por acaso, encontrei aqui algumas referências a esses cortejos, dos anos 50: lindos!
Ao circo nunca fui, o meu pai levou-me uma vez às traseiras do Coliseu para ver os animais, onde os guardavam ou lhes davam de comer. Confesso que nunca gostei desse espectáculo, parecia-me  uma violência. Tinha sempre pena dos bichos e nem os palhaços me divertiam.
Em contrapartida, fui algumas vezes, com ele (ou eles?) ao cinema: ver "O Túmulo Índio" - que muito me impressionou, a cena dos leprosos... e revi muito mais tarde - o "Joselito, Coração de Ouro", algum da Marisol?, "Os barqueiros do Volga" (cuja música relembro facilmente e encontrei depois).
Há três experiências, como ilhas no tempo:
*uma foi ter ido uns tempos para "uma creche" de freiras, onde o café com leite era dado numas canecas de lata, todas amassadas, e pão com marmelada, que me enjoavam. Além das freiras me meterem medo.
*A outra, foi inscreverem-me "na junta" e ter ido num período de Verão, viver nas "colónias", ali para a Foz do Douro. Ainda existe o edifício, tão bonito é. Recordo perfeitamente ter entrado no dormitório, uma sala feia e escura, camas de lona e um cobertor surrado. Um susto. Como uma prisão seria. Levavam-nos para a praia, ficávamos na areia, num recinto marcado por cordas. A Vitorinha foi lá uma vez ver-me, ficou do lado de lá da vedação. Fiquei doente uns dias depois, cheia de febre. Na enfermaria deram-me uma sopa que tinha folhas de couve velhas; e eu admirada e infeliz.
Desistiram e levaram-me. Acho que fui sempre muito sensível aos ambientes que me desagradavam.
*Por vezes mas poucas - tanto insistiam as vizinhas com o meu pai - aos domingos à tarde ia para a praia do Molhe, com a Leopoldina e outras, um bando crianças dali. Relembro a longa viagem de eléctrico e a minha curiosidade ao ir à janela, a ver as casas acasteladas, os azulejos e os jardins da Av. da Boavista. E, mais uma vez, a minha "pequenina consciência de classe" despertava-me a enorme interrogação: nas casas e jardins de luxo não se via ninguém. Porquê?

Ouvia-se rádio. Uma extravagância do Reinaldo era ter um bom rádio. E teve-o, o melhor móvel lá de casa. Encantava-me ouvir, como ele dizia "a maçadora nacional", geralmente em música clássica que aprendi a reconhecer. Das emissoras uma faina e procura constantes, despertavam-me a curiosidade, as falas, as músicas. Algumas árabes, aqueles sons cadenciados e dolentes.
Ouvia também os contos - eram transmitidos em brasileiro - pela rádio, havia um programa que se chamava "A e i o u - está a chegar, está a chegar a emoção, a e i o u, vai começar vai começar a emissão: A, alegres histórias, e, educam também, i, infantis sorrisos...".
E tenho na ideia canções e muitas dessas histórias de fadas, sapos-príncipes, bruxas malévolas e outras nem tanto.
De ouvir as falas das peças de teatro, de ouvir episódios do "Teatro Tide apresenta... tan-taratantan: A Força do Destino".

Outra recordação boa era irmos todos de eléctrico até ao fim da linha (Ponte da Pedra?) a casa do tio Bastos: só a viagem valia a pena. Estou a ver-me sentada num sítio quase deserto, aguardando a caminhada que se fazia entre ruelas e muros até à casa desse tio, que nem sei que tio era. Usava-se chamar "primos, tios, padrinhos" aos parentes que nos visitavam, quer de cá, quer de Valdigem, quer do Pombal.
Pois o casal, o tio Bastos de quem não lembro a cara mas a bonomia, vivia nas fraldas do Porto nos anos 50. Tinha um quintal com galinheiro, flores, horta, árvores. Geralmente matava uma galinha e fazia arroz de cabidela e canja com ovinhos para mim. Mas a visão, além do gosto, que tenho é de ir ao muro do quintal e ver campos: ao longe estavam a construir o Hospital de S. João. Que segundo averiguei, foi acabado e inaugurado em 1959; logo vi-o muito antes disso. Não sei é de onde...
Por falar em primos e padrinhos: os padrinhos da minha mãe, vinham do Pombal, de comboio, e passavam alguns dias lá em casa, acomodados como possível num espaço minúsculo. Muitas vezes fui dormir para a casa ao lado, para casa da Teresinha: outra mulher sem marido e com duas filhas. Como sempre, eu via tudo... empoleirada na cama ou nas prateleiras, foi ali que li a Flama, o Século Ilustrado e até o Paris Match. Um supremo divertimento saber tantas coisas do mundo, do cinema, das festas no estrangeiro. Notícias de outros espaços desconhecidos. Lembro-me bem dos actores da época, de filmes, dos casamentos de princípes e princesas.
Também outras famílias da aldeia, porque morávamos perto do Hospital de Stº António e vinham a consultas ou operações, vinham pernoitar em nossa casa. Quando o padrinho Azevedo, do Pombal, trazia encomendas para mandar para o filho??? no Brasil, lá ia eu e o meu pai, com ele, comprar bacalhau e acondicionar os enchidos, presunto, azeite, vinho, café, para enviar. Para isso, íamos a Leixões!!! de eléctrico, claro, sempre carregados, entregar a encomenda a um barco??? Sempre saídas de aventura para mim: uma vez fomos comer filetes de polvo a um tasco ali em frente ao porto de Leixões. Eu, que nunca comia fora de casa nem sabia que se podia comer... recordo o lugar que ainda lá estava há uns anos.
Por alturas da Páscoa, mandávam-nos o folar, uma bôla de carne feita em alguidar, por eles próprios. Um sabor, uma imagem, que nunca esquecerei.
Vinham alheiras, vinho, azeitonas, azeite, de uma vez até um coelho bravo já temperado, mandado pelo filho Luciano que era guarda-rios e caçador.
Lembro-me da minha mãe ficar muitas vezes aflita por ter de encher a cesta de vime de duas asas, de volta pelo recoveiro, com coisas "da cidade" que custavam bom dinheiro: regueifa, queijo, bacalhau...

Falo agora das leituras, o meu verdadeiro mundo.
"de ler".
De tal forma que, acreditando (bastante) em fadas ou seres mágicos, estava na cama que partilhava com a minha avó, fechava os olhos com muita força e dizia "quando os abrir aparecem muitos livros". Fiz isto inúmeras vezes mas nunca deu resultado!
Lembro-me do meu avô, pai do meu pai, me levar bananas embrulhadas em papel de jornal. Eu devia ser mesmo muito pequenina, que da cara dele não tenho nenhuma ideia - só uma espécie de sorriso para mim. E o jornal "O Primeiro de Janeiro" que tinha figurinhas de banda desenhada: "O Reizinho" por O'Soglor e mais tarde, o "Príncipe Valente".
Antes de ir para a escola pública, já lia. Recordo o primeiro livro que me deram, bonecos e viagens: "foi à Suécia e à Suiça ver aquela súcia toda".
Um livro sobre os dinossauros, os vulcões. As colecções de cromos das "Raças Humanas" (que readquiri há anos, em 2ª mão, numa loja de usados), as "Maravilhas da Natureza" ou do "Mundo".
Depois foi uma girândola de leituras, de tudo: os fascículos cor de rosa que vendiam às portas (das vizinhas que me emprestavam), a Crónica Feminina (uma parte de que me lembro bem "O que a vida nos mostra e o que ela nos esconde"), a Fagulha, os "Caprichos"!!! da época. Todos os livros do meu pai que estavam numa estante alta, sempre muito bem encapados (nem ele imaginava como eu chegava a eles), "A História da Civilização", as colecções que algumas adolescentes teriam, por ex. "Jonh, Chaufer Russo". Lia tudo, até o Dicionário de Português, quando não tinha mais que ler.
Ia pelos 8/9 para a Biblioteca Pública onde o meu pai me levava e "guardava", de tarde: uma vez pedi "De Angola à Contra-costa", convencida que ia ler coisas sobre a selva!
Dos livros dessa infância, isto até aos 10/11 anos, tenho memória de muitos. "A vida das abelhas" que o meu pai me comprou (para eu ser trabalhadora e diligente como elas...), "A Viagem Maravilhosa de Nils Olgersson através da Suécia", "O Feiticeiro de Oz" (estes dois últimos ainda os tenho), "As mil e uma noites", muitos da colecção de Júlio Verne, "Alice no país das maravilhas", a "Gata Borralheira"/"Cinderela". De livros sérios, também muitos, autores, brasileiros e portugueses: Erico Veríssimo, Jorge Amado, Joracy Camargo - uma peça de Teatro "Deus lhe pague" que muito me impressionou -, Aquilino Ribeiro, Guerra Junqueiro - "A Velhice do Padre Eterno" com figuras e tudo, "O Melro" que o meu pai recitava e eu sabia de cor,  - José Régio, Fernando Namora, Miguel Torga. Alguns dos livros retirados pelo regime salazarista, muitos de amigos do meu pai e passados por baixo de mão... Por exemplo "O Convento Desmascarado" que foi um livro que me marcou, sobre a religião e os seus podres.
Das colecções para crianças, sempre emprestados, os livros dos "Cinco" que eu adorava - aventuras e ingleses... - , a Colecção Azul, a Condessa de Ségur.
Tive o gosto de os ler ao meu filho, mais tarde: uma magia renovada.
As ultimas fotografias que tenho dessa época


No tal pátio da Menina Lúcia, um vestido de seda com flores. Atrás de mim, uma parte elevada, tecto de um quarto de arrumações, para onde eu subia para ver o "palacete" e os quintais vizinhos.
A escola... um lugar frio, húmido, na Praça Carlos Alberto. Existe ainda hoje.  Ia rigorosamente pelo caminho que me tinham ensinado, sem desvios. Ia e vinha a pé, saltitando entre as lajes das ruas, tentando não calcar as juntas irregulares delas. No chão da praça, no largo da estátua do Soldado Desconhecido sombreado de tílias imponentes, diziam haver "estrelas" feitas com o basalto branco e preto, que procurávamos. Acho que me lembro de encontrar algumas. Um passatempo, um desafio.
Das professoras tenho poucas (e más) recordações, incluindo a palmatória que era usada indiscriminadamente: apenas me lembro bem da D. Elvira, aí na 3ª classe, que era uma mulher mais terna para as crianças.
Diziam, as mais velhas suponho, que bastava por na palma um pêlo de cavalo, com "cuspe"... e a palmada não doía na mão! Muito procurei eu, à porta do quartel da GNR por onde passava, um minúsculo pêlo...
Das últimas fotografias que tenho "dos campismos":

O tapa-vento para cozinhar! e as marmitas expostas


E esta é de certeza no caminho desde o comboio até Cortegaça
Além destes lugares, recordo acampar na Penha: selvagem, quase intocada e a imagem de Nossa Senhora numa gruta, uma "aparição" que muito me admirou.
Foi assim, a percepção da Natureza que sempre se manteve, em mim e comigo.


sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Recordar Tempo 6

Falta-me elaborar a lista, encurtando-lhes a importância, aparando os bocados de sonhos, dessas vivências, as memórias pequenas dos meus entretimentos e misteriosas associações.

*Havia em casa, pendurado na parede, um Mapa Mundi (foi assim que aprendi a dizer...), mostrando miniaturas na base do mapa, de quase duas centenas de bandeiras dos diversos países: eu ainda não sabia ler mas conhecia e dizia o nome de quase (ou todos?) pelos símbolos. Recordo bem, por exemplo, a estrela e o que me parecia ser um pedaço de lua: a bandeira era da Turquia!
Daí, do mapa, afiguravam-se-me reais os recortes dos continentes ou países: um cacho de uvas, um coelho, um lagarto, um perfil de velho. Mal aprendi a ler, entretinha-me a procurar os nomes de tantas e muitas cidades, rios, e por isso o meu conhecimento de Geografia na escola e no liceu era imenso. Essencialmente "o lugar onde".
*Como as paredes eram apenas caiadas, teriam muitas sombras e (d)efeitos que eu interpretava à medida da minha imaginação. Eu via e imaginava histórias de grutas, fantasmas, bichos, florestas, pessoas.
*Inventava: ao fundo da cama, na parede, havia casacos ou coisas penduradas. Para mim eram personagens, dava-lhes nomes e falava as vozes de cada um, como se teatro fosse.
*Passava tardes sozinha, fechada num quarto, à janela de guilhotina, virada para o pátio onde se passava a vida dos vizinhos. Mexia em tudo... uma vez pintei-me de mercúrio-cromo, dedos, cara: a aflição da vizinha da frente, julgando que me tinha magoado!
*Tive uma boneca grande, espanhola - dada pelos meus padrinhos - sempre guardada num gavetão. Vestidinha, com caracóis escuros, olhos azuis, dizia "mamã" ou um som parecido, quando se oscilava para trás e para a frente. Despindo-a, descobri a armação de madeira das pernas e tronco, uma desilusão. Uma vez que convenci a minha mãe a deixar-me levá-la comigo, fiquei tão cansada que acabou por ser ela a transportá-la. Para nunca mais.
*No alto do guarda-vestidos, havia tesouros sem fim. Não sei como lhes conseguia chegar... mas lembro-me de postais da guerra, cartas, uma escrivaninha portátil com tinteiros e uma porta de correr, uma saca de missanga, "coisas".
*Em frente à casa, a quinta que agora está transformada em Centro Comercial e prédio em condomínio fechado. Enorme, árvores tão crescidas que ensombravam o bairro e quando, nos dias de tempestade caíam ramos, chamava-se os bombeiros. Nunca lá vi ninguém, a casa austera cuja frente era virada para a Rua do Rosário, apenas se antevia: mas o que eu notava bem, todos os anos, eram as japoneiras, as camélias, a profusão de cores e efeitos, das minhas amadas flores.
De casa da Venturinha, via-se uma palmeira em cujas folhas caídas pelo tronco me sussurravam morar o lobo-mau. Uma vez disse eu, a propósito de me justificarem não ter chupeta porque "o lobo-mau a  tinha levado": também o lobo-mau é que tem as culpas todas.
Tantas coisas proibidas!

Mais recordações virão. Das apenas descritas em cordão(umbilical) a partir de datas prováveis.

Fotografia de "fotógrafo" para enviar? ao Reinaldo que trabalhou alguns meses na Barragem do Picote (Miranda do Douro), no fim do mundo nos pareceu. Um problema de que falavam em surdina, relativo a heranças, famílias ou ouros delas. Nunca vi nada disso mas as pessoas "ficavam de mal" para o resto da vida. Trouxe facas, martelos, acessórios desse género que fez por lá. O meu pai era muito habilidoso!

Serão estas com 8 e 9 anos? Dos vestidos lembro-me, o primeiro com quadrados rosa e branco, o segundo vermelho com riscas de flores brancas. E da fita de veludo com flores vermelhas bordadas pela minha mãe, que me rodeava o puxo do cabelo apanhado.
Havia as festas de S. João, mais pelo S. Pedro, padroeiro do bairro. Fazia-se "grude" num tacho, compravam papel de seda colorido e muitos de nós faziam argolas e enfeites para pendurar nas cordas. Com música e baile. A primeira vez que dancei com um rapaz foi aí, no Largo, com o Zé, primo da Marietinha.
Na passagem de ano, ia às vezes com a minha avó, à "praça", Praça da Liberdade, onde as pessoas abriam garrafas de champanhe e gritavam vivas ao Ano Novo.

Por esta altura, a minha mãe andava a estudar à noite: tinha um explicador, para fazer exame e entrar como telefonista nos CTT. O que conseguiu, melhorando um pouco as nossas condições de vida. Nos primeiros anos, não tinha horário certo, era "eventual" - o que se diz precária hoje em dia... - e, por isso, esteve a trabalhar durante alguns períodos, em Amarante e Felgueiras, vivendo em casa de famílias que acolhiam essas pessoas deslocadas temporariamente.
Curioso: também alguém encontrou décadas mais tarde, essa família, que ainda se lembrava da minha mãe!
A Olímpia era um mulher bonita, educada, muito gentil, costurava e bordava primorosamente. Nunca se pintava, julgo que o Reinaldo devia ser extremamente ciumento.
Das mágoas, que deveriam ser imensas, não lhe reza o sorriso.


segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Recordar Tempo 5

É claro que do "campismo" tenho boas recordações. Da liberdade. Do campo e florestas. Das pessoas também.
Da práctica efectiva, do senso comum, do que se chama agora, a "ecologia".
Escolhia-se um lugar, os parques de campismo eram escassos, ou a gente não podia ir muito longe, sem meios. Por vezes, eu ia de boleia, de carro com o Belo e a Alice, mais os dois filhos, o Jorginho e o Fafico.
(o Fafico: havia de o encontrar no prédio onde trabalhei - "Tu não és o Fafico? Sou. E tu não és a menina que dizia que se sentia amarela?" -, nas andanças partidárias e, muito mais tarde, apareceu como sogro do Luís, menino que foi contemporâneo do meu filho, e vizinho do 4º andar)
Para as tais incríveis coincidências da minha vida... às tantas tinha que fazer outro blog!
Cortavam-se fetos para o lugar em que a tenda assentava, numa clareira de árvores. Faziam-se duas covas (as barocas...) mais longe, uma como utilitária retrete, a outra para os desperdícios dos cozinhados. Nunca era permitido pisar o milho ou outra cultura que estivesse perto. Nunca se arrancavam árvores ou ramos. O respeito pela Natureza era uma constante.
Depois de desfazer o acampamento, espalhavam-se os fetos, tapavam-se as covas e tudo ficava quase sem vestígios da nossa presença.
Pela tarde adiante, todos os miúdos se ocupavam a apanhar pinhas e ramos secos do chão. Eram postos num monte, em lugar escolhido e longe do acampamento, para fazer o "fogo de campo" à noite. Uma tradição muito bonita e alegre, cantava-se, ria-se, faziam-se improvisos e momices.
Das canções que ainda recordo:
"Deitei um cravo ao poço, ó Chico
Céu fechado céu aberto
Dá cá toma lá
amor como o Chico não há, não há"
(o Fafico, malandreco, ria-se muito)
***
"Debaixo da ponte
está um tintureiro
tingindo baetas, linda Rosa
ganhando dinheiro"
***
"São horas de emalar as troixas
adeus ó tia Maria
à sombra dum arcipreste eu pedi-te um beijo
e tu não mo deste"

Mas se fosse lembrar todas as letras de canções que ainda recordo...




Esta fotografia diz-me que foi tirada em Santa Cruz do Bispo, parque de S. Brás. Uma escadaria imensa, o rio Leça lá abaixo, onde lavávamos a louça, esfregada com areia. Havia uma escultura disforme de um homem (mitologia romana? guerreiro lusitano?), o Homem da Maça. E muitas pedras em forma de laje.

Aqui certamente Cortegaça, basta olhar para a areia do chão. Um pinheiral onde descobriram uma bomba de água. Para atingir a praia, andava-se por entre árvores baixas e retorcidas, quase de gatas, chegávamos a uma duna enorme, do cimo da qual nos atirávamos, num delicioso escorrega.
Da estação de comboio até ao pinhal era um grande caminho a pé. Lembro-me das casas de pescadores, perto do mar: duma vez chegámos lá, um grupo de campistas, cheios de fome. Estavam a fritar peixe apanhado "na hora", numa máquina a petróleo no chão. Ali comemos, a cena ainda a vejo nos meus slides da memória.


E de novo a Quinta da Conceição, ainda existem os pórticos e o lago com chafariz


Acabam com sorrisos estes anos menores...

domingo, 8 de dezembro de 2019

Recordar Tempo 4

No entretanto dos anos, é tempo de sair e descrever as saídas.
- Dos pequenos passeios com o meu pai, ao Âncora d'Ouro, onde eu ansiosa olhava para ele e esperava que fosse dia de comer um bolo de arroz. Ele jogava bilhar no primeiro andar, enquanto eu ficava à janela, a ver quem passava.
- As saídas com a minha avó às compras por perto, ao caleiro, ao Mercado do Anjo, de que tenho uma imagem real mas fugidia (foi demolido por completo em 1952, portanto a imagem que tenho é dos 2/3 anos).
- Os domingos à tarde, com a Vitorinha, idas ao jardim da Cordoaria, onde havia um pequeno parque infantil: e tinha que se esperar por vez para lá entrar.
- O atravessar a baixa, por vielas, com a avó, até à Ribeira. Grandes barricas de madeira com azeitonas, peixe e fruta nas bancas. O lugar onde se comprava directamente aos pescadores que desciam o rio, o sável, em tempo dele.
Que quase tudo se vendia às portas: o leite, o pão, o azeite, o peixe, a hortaliça. Bastava um pregão e as mulheres (e os gatos) acorriam. Lá para casa, embora pobres e com muita economia de meios, comia-se o que fosse mais fresco, o peixe era escolhido pelo dedo da Vitorinha, que lhe inspecionava os olhos e as guelras. Lembro-me de aspectos, sabores e de nomes: o capatão de pinta, os bifes de atum, a corvina. As enguias. Os chicharros. O polvo. As marmotinhas de rabo na boca. A minha avó cozinhava, ou começava a cozinhar a sopa, de manhã cedo. As texturas (por exemplo, a vitela da costela mendinha estufada horas em lume brando até ficar bem apurada, o arroz de sardinhas pequenas ou de polvo, malandrinho) e as refeições que fazia, ainda hoje - e quase todos os dias - ma trazem à lembrança.
Aprendi imenso por ver fazer.
***

O Campismo daria um "conto largo" se eu tivesse as fotografias!
Sei que o meu pai se inscreveu no Clube de Campismo do Porto, ele e amigos, dos primeiros na cidade a seguir esta modalidade "desportiva". O Caldeira que cantava cantigas de Cinfães, o Lopo, o Belo e a família, o Neca, o Leandro...
Um alvoroço nos tomava a todos e aos vizinhos que vinham às portas ver a saída.
Comprada uma tenda francesa, com chão impermeável e duplo-tecto, várias marmitas, um candeeiro e máquina a petróleo, um recipiente de sarja dura e estanque para a água, sacos cama, uma mochila às costas cheia de bolsas por fora, uns calções, uma boina.
Todos julgavam que eram "os ciganos"!
O meu pai contava coisas divertidas, muitas vezes ia sozinho com os companheiros. Tantas vezes à boleia, pelas estradas e aldeias desconhecidas: gostava de conseguir lembrar-me...



Creio ser esta uma das suas saídas a pé. Uma vez que, numa aldeia da Serra do Montemuro, todos os habitantes se esconderam e a aldeia parecia deserta. Com as pessoas, já depois de se darem ao conhecimento, partilharam as conservas e queijo (o que era uma bola coberta de película grossa vermelha), coisas que aquela gente desconhecia e com que se espantava.
Outra vez que, de noite, acamparam num sítio que lhes pareceu pacífico e agradável e quando um acordou de manhã, diz: "O pá, olha ali uma cruz..." - tinham acampado num cemitério!
A primeira vez que fui com ele(s), foi para a Quinta da Conceição, espaço fechado na altura mas que foi cedido (pelo padre?) para o grupo do campismo. Fomos de eléctrico até Matosinhos onde num café bebi "um pneu", água com uma rodela grossa de limão. O resto do caminho, fomos a pé.
As cavilhas e as espias que seguravam a tenda, eram a minha (e a dele) preocupação: a tenda teria de ficar sem uma ruga para ser impermeável. Por isso, de cada vez que eu dava uma topada desatenta, lá estava ele a "pregar". Dessa primeira vez de acampamento até caí e fiz um lanho por baixo do queixo: a recordação desse dia aqui ficou.


Assim como o meu espanto por andar na "floresta", a escuridão e frescura da mina onde se ia buscar água, a sensação de liberdade e acordar com pássaros.
Estas fotografias são da época, creio que tenham sido tiradas num parque, em Vizela; onde me lembro que choveu muito, muito, e tiveram que se fazer regos à volta da tenda, para evitar empoçar a água.


Geralmente, ia-se num fim de semana. A minha avó ia ter connosco ao domingo, quando havia camioneta ou comboio. Levava sempre a calda do arroz feita (coelho, galinha) e, é claro, ocupava-se de tudo, cozinhar, lavar a louça, estender a roupa numa corda entre duas árvores.


Aqui estamos, eu nem chego com os pés ao chão.
Uma família feliz!
Uma mãe sempre preocupada com o seu senhor marido. E sempre ocupada a trabalhar, a fazer alguma coisa, costurar ou fazer malha, sob a asa da mãe dela que de tudo o resto tratava.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Recordar Tempo 3

Apontamento ontem, da única amiga a quem falei do blog; temos ambas agora setenta e tal anos, as nossas vidas são, e foram, muito diferentes. Há apenas uma amizade e simpatia bondosas entre as duas.
Diz M. como um livro aberto:
"Que o blog não te seja demasiado doloroso. Que seja um meio de reflexão para maior qualidade da tua existência, para aperfeiçoamento do pensamento. Se assim for, acrescentas-te a ti mesma e serás mais feliz, porque o que fica será a substância de ti ao longo da tua vida, uma espécie de decantação, e portanto, de tranquilidade." 

Tomara que assim fosse.
Há hiatos entre os anos, sem datas nem fotografias, apenas pinceladas de recordações dispersas ou fugidias pela paisagem das pessoas.com.quem.estava.
O Jardim do Carregal era ali, não sei quem tirou as fotografias:


Com uma amiga do trabalho da minha mãe, provavelmente na mesma época visto que o babeiro e os sapatinhos brancos são os mesmos. Esse vestido da minha mãe tinha bolas verdes.
Por essa altura ou idade, lembro-me de guardar feijões, tirados inteiros e enxutos, da sopa, nos bolsos do babeiro: que ia comendo pela tarde adiante. Segredos meus, invenções.

No mesmo jardim, onde havia um fontanário público. E junto ao arvoredo do lago, passavam às vezes ratos a correr. Este era outro vestido de piquê branco, com um vivo (era assim que se chamava) de fita colorida vermelha, com patinhos?
Observo, agora que desapareceram, que gostava muito de ver aquele género de divisórias do lago a imitar troncos de árvore, em cimento, julgo. Diziam bem com os jardins e não eram ameaçadoras como as grades que em tempos recentes as substituíram.




Dessa época, havia pessoas mais velhas de que me lembro muito bem:
- a Custódinha que morava mesmo em frente e a quem eu perguntava sempre (da janela do quarto onde ficava fechada) as horas. Sabendo que depois das 5h chegava a minha mãe,
- a Dona Acácia morava logo a seguir à Custódinha. Era costureira/calçeira. Dela recordo bondade. E que o meu pai me punha a ajudar na costura, nas tardes das férias grandes. Nem sempre mas aquela alma paterna arranjava muitas formas de me "organizar e vigiar". Daí ter aprendido os alinhavos, passar fios, as baínhas, o pesponto... Trabalhava com as fardas dos empregados da Carris, fazenda grossa, castanho escuro, com vivos pretos. Depois, e sempre que andava nos eléctricos, me lembrava de mim, sentada numa cadeirinha, a coser (as mágoas de não poder brincar),
- a Noeminha, enfermeira no hospital, era a que dava injecções a todos. Vivia no "Largo", fora da porta dizia "Bairro S. Pedro" e tinha um canteiro com uma buganvília trepadeira, flores de um rosa muito vivo parecendo papel, que eu adorava. Senhora de um certo estatuto que lhe dava a profissão e os favores, vestida de branco com uma touca, e a sua capa de fazenda azul escura,
- a Sarinha, uma velha de negro, irrascível, a invectivar com "asneiras" tudo e todos, apoiada na meia porta sempre protestava com alguém. Era mãe de três mulheres de que falarei a seguir, e um rapaz, o Carlos vidraçeiro, mais conhecido pelo "Vidraças". Volta e meia, a ele dava-lhe "o chilique", iam todos a correr estender uma manta no chão para não se magoar. Deveria ser epilepsia. Na casa à entrada, tinha um macaco amarelo, de barro brilhante, a tocar viola, na cómoda. Que piada achava eu ao bicho! A senhora de mau feitio, tinha contudo uma preferência por mim, que lhe desenhava e recortava figurinhas com que ela enfeitava as paredes. Também lhe fazia recortes de jornal para pôr nas prateleiras da cozinha, imagens de bailarinas com tecido colado em papel,
- a Rosinha do corredor, com a sua máquina de costura quase à porta, virada para quem passava. Sempre se parava para conversar. Mulher só (tantas eram ali, agora que penso nisso!), recordo que a minha avó lhe levava, escondido debaixo do avental, um tachinho de sopa ou o que fosse, para a ajudar,
- a Menina Lúcia (e o Senhor Juvandes) intermediária da dona "do lugar", a quem íamos pagar as rendas. Não tinha filhos e por isso acolheu a Alice, de uma família numerosa e pobre, com olhos azuis como contas de vidro e as suas tranças pretas. Vivia bem, a casa era maior, tinha um móvel-rádio que eu muito apreciava, gavetas cheias de curiosidades, um pátio onde eu mesma haveria de estar sentada muitas vezes, com uma cadeira de lona às riscas. Dela relembro ter sempre à mão uma bolacha ou um biscoita para dar às crianças. Curiosamente, recordo como se fosse hoje, o sabor de azeite dos bolos secos de Santa Cruz da Trapa que traziam da aldeia??? Não é tempo de falar em coincidências que me surgiram tantas vezes mas, essa Alice já com família, veio viver para um andar do prédio das traseiras da minha casa; eu reconheci-lhe as feições, de longe,

- e outras, muitas outras, com histórias que fui sabendo ou conhecendo pela vida adiante

Uma das pessoas de que guardo uma doce lembrança: três irmãs, a Alice, irmã da Leopoldina e da Fernanda. Uma mulher sorridente que gostava muito de mim, pelas festas dava-me chocolates de leite ou amêndoas, acarinháva-me. De um namorado que tinha, arranjou-me um relógio estragado para eu brincar, que eu abri para ver as pequenas peças e rodinhas. É um brinquedo curioso de que me lembro bem. Morreu cedo, de leucemia. Recordo ter perguntado e vagamente me responderam que lhe faltavam "glóbulos vermelhos" e tinha demasiados "glóbulos brancos". Olhava para o meu sangue, quando me magoava, com esta preocupação: que fosse bem vermelhinho!

O meu pai, com uma bela figura: bem me lembro das suas gravatas de malha, às riscas, iria jurar que esta era de riscas brancas e verdes. Usava quase sempre um lenço muito bem armado em pontas, no bolso do casaco.
Apetece-me sorrir: tirando o feitio, era um homem bonito!
Perguntava-me, desde muito nova: "o que fizeste hoje para o corpo a para o espírito?", questão posta de olhos em em mim e que me obrigava a dizer verdades... São dele as expressões "fazer o quilómetro" (dormir à tarde) e "dar uma volta ao bilhar grande" (sair com ele a passear)

O Reinaldo esteve internado em tratamento, creio que um ano, no Hospital do Caramulo, com tuberculose. Foi algum tempo de eventual sossego, na minha desassossegada infância, eu teria 3 ou 4 anos. Não sei se vinha a casa, se a minha mãe lá ia. Há pequenas fotografias desse tempo, não pareciam nada doentes... com excursões pelos campos e montanhas, neve e florestas, e todos sorridentes, homens e mulheres.
Pouco me apercebi disso, era chamado "tratamento". Lembro-me sempre depois que se dava dinheiro (dez tostões?) no peditório para os tuberculosos.
Desse período nebuloso, de caras fechadas - que era terrível, a doença, nesse tempo em que se morria facilmente com ela -, recordo, ele ou alguém, ter trazido umas figurinhas de vidro (da Marinha Grande?), um elefante, um cão, um cavalo??? E um dos amigos que estava com ele ter feito uma miniatura de sofás, com braços de madeira e estofados. O sofá maior tinha uma gavetinha atrás. Há-de andar guardado por aí, quase sem côr, o que é um sinal, uma lembrança física, desses tempo.
E, essencialmente, o primeiro livro onde aprendi sozinha a ler:
A - águia
E - égua
I - igreja
O - ovo
U - uvas
Foi quando descobri o encanto da leitura!