Brincava pouco com as crianças do bairro, não me deixavam andar na rua, a não ser com tempo vigiado e controlado. Jogava às escondidas, "a patela", o bom-barqueiro, à corda-queimada, o anel rodando numa corda. Às casinhas.
Dava-me bem com a Glória mas diziam que era uma miúda muito mentirosa. Mesmo quando a encontrei mais tarde, assim parecia ter ficado..
Gostava muito da Marietinha, mais velha que eu mas uma moça excelente; e esta tinha sempre palavras e livros, bons.
Havia os cortejos de Carnaval dos Fenianos ou da Queima das Fitas, passavam perto de casa, na ida para o Palácio: íamos assistir do passeio do jardim. Uma festa para a multidão que via ou acompanhava os carros enfeitados! Por acaso, encontrei aqui algumas referências a esses cortejos, dos anos 50: lindos!
Ao circo nunca fui, o meu pai levou-me uma vez às traseiras do Coliseu para ver os animais, onde os guardavam ou lhes davam de comer. Confesso que nunca gostei desse espectáculo, parecia-me uma violência. Tinha sempre pena dos bichos e nem os palhaços me divertiam.
Em contrapartida, fui algumas vezes, com ele (ou eles?) ao cinema: ver "O Túmulo Índio" - que muito me impressionou, a cena dos leprosos... e revi muito mais tarde - o "Joselito, Coração de Ouro", algum da Marisol?, "Os barqueiros do Volga" (cuja música relembro facilmente e encontrei depois).
Há três experiências, como ilhas no tempo:
*uma foi ter ido uns tempos para "uma creche" de freiras, onde o café com leite era dado numas canecas de lata, todas amassadas, e pão com marmelada, que me enjoavam. Além das freiras me meterem medo.
*A outra, foi inscreverem-me "na junta" e ter ido num período de Verão, viver nas "colónias", ali para a Foz do Douro. Ainda existe o edifício, tão bonito é. Recordo perfeitamente ter entrado no dormitório, uma sala feia e escura, camas de lona e um cobertor surrado. Um susto. Como uma prisão seria. Levavam-nos para a praia, ficávamos na areia, num recinto marcado por cordas. A Vitorinha foi lá uma vez ver-me, ficou do lado de lá da vedação. Fiquei doente uns dias depois, cheia de febre. Na enfermaria deram-me uma sopa que tinha folhas de couve velhas; e eu admirada e infeliz.
Desistiram e levaram-me. Acho que fui sempre muito sensível aos ambientes que me desagradavam.
*Por vezes mas poucas - tanto insistiam as vizinhas com o meu pai - aos domingos à tarde ia para a praia do Molhe, com a Leopoldina e outras, um bando crianças dali. Relembro a longa viagem de eléctrico e a minha curiosidade ao ir à janela, a ver as casas acasteladas, os azulejos e os jardins da Av. da Boavista. E, mais uma vez, a minha "pequenina consciência de classe" despertava-me a enorme interrogação: nas casas e jardins de luxo não se via ninguém. Porquê?
Ouvia-se rádio. Uma extravagância do Reinaldo era ter um bom rádio. E teve-o, o melhor móvel lá de casa. Encantava-me ouvir, como ele dizia "a maçadora nacional", geralmente em música clássica que aprendi a reconhecer. Das emissoras uma faina e procura constantes, despertavam-me a curiosidade, as falas, as músicas. Algumas árabes, aqueles sons cadenciados e dolentes.
Ouvia também os contos - eram transmitidos em brasileiro - pela rádio, havia um programa que se chamava "A e i o u - está a chegar, está a chegar a emoção, a e i o u, vai começar vai começar a emissão: A, alegres histórias, e, educam também, i, infantis sorrisos...".
E tenho na ideia canções e muitas dessas histórias de fadas, sapos-príncipes, bruxas malévolas e outras nem tanto.
De ouvir as falas das peças de teatro, de ouvir episódios do "Teatro Tide apresenta... tan-taratantan: A Força do Destino".
Outra recordação boa era irmos todos de eléctrico até ao fim da linha (Ponte da Pedra?) a casa do tio Bastos: só a viagem valia a pena. Estou a ver-me sentada num sítio quase deserto, aguardando a caminhada que se fazia entre ruelas e muros até à casa desse tio, que nem sei que tio era. Usava-se chamar "primos, tios, padrinhos" aos parentes que nos visitavam, quer de cá, quer de Valdigem, quer do Pombal.
Pois o casal, o tio Bastos de quem não lembro a cara mas a bonomia, vivia nas fraldas do Porto nos anos 50. Tinha um quintal com galinheiro, flores, horta, árvores. Geralmente matava uma galinha e fazia arroz de cabidela e canja com ovinhos para mim. Mas a visão, além do gosto, que tenho é de ir ao muro do quintal e ver campos: ao longe estavam a construir o Hospital de S. João. Que segundo averiguei, foi acabado e inaugurado em 1959; logo vi-o muito antes disso. Não sei é de onde...
Por falar em primos e padrinhos: os padrinhos da minha mãe, vinham do Pombal, de comboio, e passavam alguns dias lá em casa, acomodados como possível num espaço minúsculo. Muitas vezes fui dormir para a casa ao lado, para casa da Teresinha: outra mulher sem marido e com duas filhas. Como sempre, eu via tudo... empoleirada na cama ou nas prateleiras, foi ali que li a Flama, o Século Ilustrado e até o Paris Match. Um supremo divertimento saber tantas coisas do mundo, do cinema, das festas no estrangeiro. Notícias de outros espaços desconhecidos. Lembro-me bem dos actores da época, de filmes, dos casamentos de princípes e princesas.
Também outras famílias da aldeia, porque morávamos perto do Hospital de Stº António e vinham a consultas ou operações, vinham pernoitar em nossa casa. Quando o padrinho Azevedo, do Pombal, trazia encomendas para mandar para o filho??? no Brasil, lá ia eu e o meu pai, com ele, comprar bacalhau e acondicionar os enchidos, presunto, azeite, vinho, café, para enviar. Para isso, íamos a Leixões!!! de eléctrico, claro, sempre carregados, entregar a encomenda a um barco??? Sempre saídas de aventura para mim: uma vez fomos comer filetes de polvo a um tasco ali em frente ao porto de Leixões. Eu, que nunca comia fora de casa nem sabia que se podia comer... recordo o lugar que ainda lá estava há uns anos.
Por alturas da Páscoa, mandávam-nos o folar, uma bôla de carne feita em alguidar, por eles próprios. Um sabor, uma imagem, que nunca esquecerei.
Vinham alheiras, vinho, azeitonas, azeite, de uma vez até um coelho bravo já temperado, mandado pelo filho Luciano que era guarda-rios e caçador.
Lembro-me da minha mãe ficar muitas vezes aflita por ter de encher a cesta de vime de duas asas, de volta pelo recoveiro, com coisas "da cidade" que custavam bom dinheiro: regueifa, queijo, bacalhau...
Falo agora das leituras, o meu verdadeiro mundo.
"de ler".
De tal forma que, acreditando (bastante) em fadas ou seres mágicos, estava na cama que partilhava com a minha avó, fechava os olhos com muita força e dizia "
quando os abrir aparecem muitos livros". Fiz isto inúmeras vezes mas nunca deu resultado!
Lembro-me do meu avô, pai do meu pai, me levar bananas embrulhadas em papel de jornal. Eu devia ser mesmo muito pequenina, que da cara dele não tenho nenhuma ideia - só uma espécie de sorriso para mim. E o jornal "O Primeiro de Janeiro" que tinha figurinhas de banda desenhada: "O Reizinho" por O'Soglor e mais tarde, o "Príncipe Valente".
Antes de ir para a escola pública, já lia. Recordo o primeiro livro que me deram, bonecos e viagens: "foi à Suécia e à Suiça ver aquela súcia toda".
Um livro sobre os dinossauros, os vulcões. As colecções de cromos das "Raças Humanas" (que readquiri há anos, em 2ª mão, numa loja de usados), as "Maravilhas da Natureza" ou do "Mundo".
Depois foi uma girândola de leituras, de tudo: os fascículos cor de rosa que vendiam às portas (das vizinhas que me emprestavam), a Crónica Feminina (uma parte de que me lembro bem "O que a vida nos mostra e o que ela nos esconde"), a Fagulha, os "Caprichos"!!! da época. Todos os livros do meu pai que estavam numa estante alta, sempre muito bem encapados (nem ele imaginava como eu chegava a eles), "A História da Civilização", as colecções que algumas adolescentes teriam, por ex. "Jonh, Chaufer Russo". Lia tudo, até o Dicionário de Português, quando não tinha mais que ler.
Ia pelos 8/9 para a Biblioteca Pública onde o meu pai me levava e "guardava", de tarde: uma vez pedi "De Angola à Contra-costa", convencida que ia ler coisas sobre a selva!
Dos livros dessa infância, isto até aos 10/11 anos, tenho memória de muitos. "A vida das abelhas" que o meu pai me comprou (para eu ser trabalhadora e diligente como elas...), "A Viagem Maravilhosa de Nils Olgersson através da Suécia", "O Feiticeiro de Oz" (estes dois últimos ainda os tenho), "As mil e uma noites", muitos da colecção de Júlio Verne, "Alice no país das maravilhas", a "Gata Borralheira"/"Cinderela". De livros sérios, também muitos, autores, brasileiros e portugueses: Erico Veríssimo, Jorge Amado, Joracy Camargo - uma peça de Teatro "Deus lhe pague" que muito me impressionou -, Aquilino Ribeiro, Guerra Junqueiro - "A Velhice do Padre Eterno" com figuras e tudo, "O Melro" que o meu pai recitava e eu sabia de cor, - José Régio, Fernando Namora, Miguel Torga. Alguns dos livros retirados pelo regime salazarista, muitos de amigos do meu pai e passados por baixo de mão... Por exemplo "O Convento Desmascarado" que foi um livro que me marcou, sobre a religião e os seus podres.
Das colecções para crianças, sempre emprestados, os livros dos "Cinco" que eu adorava - aventuras e ingleses... - , a Colecção Azul, a Condessa de Ségur.
Tive o gosto de os ler ao meu filho, mais tarde: uma magia renovada.
As ultimas fotografias que tenho dessa época
No tal pátio da Menina Lúcia, um vestido de seda com flores. Atrás de mim, uma parte elevada, tecto de um quarto de arrumações, para onde eu subia para ver o "palacete" e os quintais vizinhos.
A escola... um lugar frio, húmido, na Praça Carlos Alberto. Existe ainda hoje. Ia rigorosamente pelo caminho que me tinham ensinado, sem desvios. Ia e vinha a pé, saltitando entre as lajes das ruas, tentando não calcar as juntas irregulares delas. No chão da praça, no largo da estátua do Soldado Desconhecido sombreado de tílias imponentes, diziam haver "estrelas" feitas com o basalto branco e preto, que procurávamos. Acho que me lembro de encontrar algumas. Um passatempo, um desafio.
Das professoras tenho poucas (e más) recordações, incluindo a palmatória que era usada indiscriminadamente: apenas me lembro bem da D. Elvira, aí na 3ª classe, que era uma mulher mais terna para as crianças.
Diziam, as mais velhas suponho, que bastava por na palma um pêlo de cavalo, com "cuspe"... e a palmada não doía na mão! Muito procurei eu, à porta do quartel da GNR por onde passava, um minúsculo pêlo...
Das últimas fotografias que tenho "dos campismos":
O tapa-vento para cozinhar! e as marmitas expostas
E esta é de certeza no caminho desde o comboio até Cortegaça
Além destes lugares, recordo acampar na Penha: selvagem, quase intocada e a imagem de Nossa Senhora numa gruta, uma "aparição" que muito me admirou.
Foi assim, a percepção da Natureza que sempre se manteve, em mim e comigo.