Falta-me elaborar a lista, encurtando-lhes a importância, aparando os bocados de sonhos, dessas vivências, as memórias pequenas dos meus entretimentos e misteriosas associações.
*Havia em casa, pendurado na parede, um Mapa Mundi (foi assim que aprendi a dizer...), mostrando miniaturas na base do mapa, de quase duas centenas de bandeiras dos diversos países: eu ainda não sabia ler mas conhecia e dizia o nome de quase (ou todos?) pelos símbolos. Recordo bem, por exemplo, a estrela e o que me parecia ser um pedaço de lua: a bandeira era da Turquia!
Daí, do mapa, afiguravam-se-me reais os recortes dos continentes ou países: um cacho de uvas, um coelho, um lagarto, um perfil de velho. Mal aprendi a ler, entretinha-me a procurar os nomes de tantas e muitas cidades, rios, e por isso o meu conhecimento de Geografia na escola e no liceu era imenso. Essencialmente "o lugar onde".
*Como as paredes eram apenas caiadas, teriam muitas sombras e (d)efeitos que eu interpretava à medida da minha imaginação. Eu via e imaginava histórias de grutas, fantasmas, bichos, florestas, pessoas.
*Inventava: ao fundo da cama, na parede, havia casacos ou coisas penduradas. Para mim eram personagens, dava-lhes nomes e falava as vozes de cada um, como se teatro fosse.
*Passava tardes sozinha, fechada num quarto, à janela de guilhotina, virada para o pátio onde se passava a vida dos vizinhos. Mexia em tudo... uma vez pintei-me de mercúrio-cromo, dedos, cara: a aflição da vizinha da frente, julgando que me tinha magoado!
*Tive uma boneca grande, espanhola - dada pelos meus padrinhos - sempre guardada num gavetão. Vestidinha, com caracóis escuros, olhos azuis, dizia "mamã" ou um som parecido, quando se oscilava para trás e para a frente. Despindo-a, descobri a armação de madeira das pernas e tronco, uma desilusão. Uma vez que convenci a minha mãe a deixar-me levá-la comigo, fiquei tão cansada que acabou por ser ela a transportá-la. Para nunca mais.
*No alto do guarda-vestidos, havia tesouros sem fim. Não sei como lhes conseguia chegar... mas lembro-me de postais da guerra, cartas, uma escrivaninha portátil com tinteiros e uma porta de correr, uma saca de missanga, "coisas".
*Em frente à casa, a quinta que agora está transformada em Centro Comercial e prédio em condomínio fechado. Enorme, árvores tão crescidas que ensombravam o bairro e quando, nos dias de tempestade caíam ramos, chamava-se os bombeiros. Nunca lá vi ninguém, a casa austera cuja frente era virada para a Rua do Rosário, apenas se antevia: mas o que eu notava bem, todos os anos, eram as japoneiras, as camélias, a profusão de cores e efeitos, das minhas amadas flores.
De casa da Venturinha, via-se uma palmeira em cujas folhas caídas pelo tronco me sussurravam morar o lobo-mau. Uma vez disse eu, a propósito de me justificarem não ter chupeta porque "o lobo-mau a tinha levado": também o lobo-mau é que tem as culpas todas.
Tantas coisas proibidas!
Mais recordações virão. Das apenas descritas em cordão(umbilical) a partir de datas prováveis.
Fotografia de "fotógrafo" para enviar? ao Reinaldo que trabalhou alguns meses na Barragem do Picote (Miranda do Douro), no fim do mundo nos pareceu. Um problema de que falavam em surdina, relativo a heranças, famílias ou ouros delas. Nunca vi nada disso mas as pessoas "ficavam de mal" para o resto da vida. Trouxe facas, martelos, acessórios desse género que fez por lá. O meu pai era muito habilidoso!
Serão estas com 8 e 9 anos? Dos vestidos lembro-me, o primeiro com quadrados rosa e branco, o segundo vermelho com riscas de flores brancas. E da fita de veludo com flores vermelhas bordadas pela minha mãe, que me rodeava o puxo do cabelo apanhado.
Havia as festas de S. João, mais pelo S. Pedro, padroeiro do bairro. Fazia-se "grude" num tacho, compravam papel de seda colorido e muitos de nós faziam argolas e enfeites para pendurar nas cordas. Com música e baile. A primeira vez que dancei com um rapaz foi aí, no Largo, com o Zé, primo da Marietinha.
Na passagem de ano, ia às vezes com a minha avó, à "praça", Praça da Liberdade, onde as pessoas abriam garrafas de champanhe e gritavam vivas ao Ano Novo.
Por esta altura, a minha mãe andava a estudar à noite: tinha um explicador, para fazer exame e entrar como telefonista nos CTT. O que conseguiu, melhorando um pouco as nossas condições de vida. Nos primeiros anos, não tinha horário certo, era "eventual" - o que se diz precária hoje em dia... - e, por isso, esteve a trabalhar durante alguns períodos, em Amarante e Felgueiras, vivendo em casa de famílias que acolhiam essas pessoas deslocadas temporariamente.
Curioso: também alguém encontrou décadas mais tarde, essa família, que ainda se lembrava da minha mãe!
A Olímpia era um mulher bonita, educada, muito gentil, costurava e bordava primorosamente. Nunca se pintava, julgo que o Reinaldo devia ser extremamente ciumento.
Das mágoas, que deveriam ser imensas, não lhe reza o sorriso.
Notável, continuo a dizê-lo, como te lembras de tantos detalhes. E acrescento: o teu sorriso e o teu olhar são os mesmos de agora.
ResponderEliminarNa bela expressão da tua mãe, em quem vejo o que acima dizes sobre ela, sabes quem encontro? Ora adivinha lá... depois te direi se acertaste.