sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Recordar Tempo 3

Apontamento ontem, da única amiga a quem falei do blog; temos ambas agora setenta e tal anos, as nossas vidas são, e foram, muito diferentes. Há apenas uma amizade e simpatia bondosas entre as duas.
Diz M. como um livro aberto:
"Que o blog não te seja demasiado doloroso. Que seja um meio de reflexão para maior qualidade da tua existência, para aperfeiçoamento do pensamento. Se assim for, acrescentas-te a ti mesma e serás mais feliz, porque o que fica será a substância de ti ao longo da tua vida, uma espécie de decantação, e portanto, de tranquilidade." 

Tomara que assim fosse.
Há hiatos entre os anos, sem datas nem fotografias, apenas pinceladas de recordações dispersas ou fugidias pela paisagem das pessoas.com.quem.estava.
O Jardim do Carregal era ali, não sei quem tirou as fotografias:


Com uma amiga do trabalho da minha mãe, provavelmente na mesma época visto que o babeiro e os sapatinhos brancos são os mesmos. Esse vestido da minha mãe tinha bolas verdes.
Por essa altura ou idade, lembro-me de guardar feijões, tirados inteiros e enxutos, da sopa, nos bolsos do babeiro: que ia comendo pela tarde adiante. Segredos meus, invenções.

No mesmo jardim, onde havia um fontanário público. E junto ao arvoredo do lago, passavam às vezes ratos a correr. Este era outro vestido de piquê branco, com um vivo (era assim que se chamava) de fita colorida vermelha, com patinhos?
Observo, agora que desapareceram, que gostava muito de ver aquele género de divisórias do lago a imitar troncos de árvore, em cimento, julgo. Diziam bem com os jardins e não eram ameaçadoras como as grades que em tempos recentes as substituíram.




Dessa época, havia pessoas mais velhas de que me lembro muito bem:
- a Custódinha que morava mesmo em frente e a quem eu perguntava sempre (da janela do quarto onde ficava fechada) as horas. Sabendo que depois das 5h chegava a minha mãe,
- a Dona Acácia morava logo a seguir à Custódinha. Era costureira/calçeira. Dela recordo bondade. E que o meu pai me punha a ajudar na costura, nas tardes das férias grandes. Nem sempre mas aquela alma paterna arranjava muitas formas de me "organizar e vigiar". Daí ter aprendido os alinhavos, passar fios, as baínhas, o pesponto... Trabalhava com as fardas dos empregados da Carris, fazenda grossa, castanho escuro, com vivos pretos. Depois, e sempre que andava nos eléctricos, me lembrava de mim, sentada numa cadeirinha, a coser (as mágoas de não poder brincar),
- a Noeminha, enfermeira no hospital, era a que dava injecções a todos. Vivia no "Largo", fora da porta dizia "Bairro S. Pedro" e tinha um canteiro com uma buganvília trepadeira, flores de um rosa muito vivo parecendo papel, que eu adorava. Senhora de um certo estatuto que lhe dava a profissão e os favores, vestida de branco com uma touca, e a sua capa de fazenda azul escura,
- a Sarinha, uma velha de negro, irrascível, a invectivar com "asneiras" tudo e todos, apoiada na meia porta sempre protestava com alguém. Era mãe de três mulheres de que falarei a seguir, e um rapaz, o Carlos vidraçeiro, mais conhecido pelo "Vidraças". Volta e meia, a ele dava-lhe "o chilique", iam todos a correr estender uma manta no chão para não se magoar. Deveria ser epilepsia. Na casa à entrada, tinha um macaco amarelo, de barro brilhante, a tocar viola, na cómoda. Que piada achava eu ao bicho! A senhora de mau feitio, tinha contudo uma preferência por mim, que lhe desenhava e recortava figurinhas com que ela enfeitava as paredes. Também lhe fazia recortes de jornal para pôr nas prateleiras da cozinha, imagens de bailarinas com tecido colado em papel,
- a Rosinha do corredor, com a sua máquina de costura quase à porta, virada para quem passava. Sempre se parava para conversar. Mulher só (tantas eram ali, agora que penso nisso!), recordo que a minha avó lhe levava, escondido debaixo do avental, um tachinho de sopa ou o que fosse, para a ajudar,
- a Menina Lúcia (e o Senhor Juvandes) intermediária da dona "do lugar", a quem íamos pagar as rendas. Não tinha filhos e por isso acolheu a Alice, de uma família numerosa e pobre, com olhos azuis como contas de vidro e as suas tranças pretas. Vivia bem, a casa era maior, tinha um móvel-rádio que eu muito apreciava, gavetas cheias de curiosidades, um pátio onde eu mesma haveria de estar sentada muitas vezes, com uma cadeira de lona às riscas. Dela relembro ter sempre à mão uma bolacha ou um biscoita para dar às crianças. Curiosamente, recordo como se fosse hoje, o sabor de azeite dos bolos secos de Santa Cruz da Trapa que traziam da aldeia??? Não é tempo de falar em coincidências que me surgiram tantas vezes mas, essa Alice já com família, veio viver para um andar do prédio das traseiras da minha casa; eu reconheci-lhe as feições, de longe,

- e outras, muitas outras, com histórias que fui sabendo ou conhecendo pela vida adiante

Uma das pessoas de que guardo uma doce lembrança: três irmãs, a Alice, irmã da Leopoldina e da Fernanda. Uma mulher sorridente que gostava muito de mim, pelas festas dava-me chocolates de leite ou amêndoas, acarinháva-me. De um namorado que tinha, arranjou-me um relógio estragado para eu brincar, que eu abri para ver as pequenas peças e rodinhas. É um brinquedo curioso de que me lembro bem. Morreu cedo, de leucemia. Recordo ter perguntado e vagamente me responderam que lhe faltavam "glóbulos vermelhos" e tinha demasiados "glóbulos brancos". Olhava para o meu sangue, quando me magoava, com esta preocupação: que fosse bem vermelhinho!

O meu pai, com uma bela figura: bem me lembro das suas gravatas de malha, às riscas, iria jurar que esta era de riscas brancas e verdes. Usava quase sempre um lenço muito bem armado em pontas, no bolso do casaco.
Apetece-me sorrir: tirando o feitio, era um homem bonito!
Perguntava-me, desde muito nova: "o que fizeste hoje para o corpo a para o espírito?", questão posta de olhos em em mim e que me obrigava a dizer verdades... São dele as expressões "fazer o quilómetro" (dormir à tarde) e "dar uma volta ao bilhar grande" (sair com ele a passear)

O Reinaldo esteve internado em tratamento, creio que um ano, no Hospital do Caramulo, com tuberculose. Foi algum tempo de eventual sossego, na minha desassossegada infância, eu teria 3 ou 4 anos. Não sei se vinha a casa, se a minha mãe lá ia. Há pequenas fotografias desse tempo, não pareciam nada doentes... com excursões pelos campos e montanhas, neve e florestas, e todos sorridentes, homens e mulheres.
Pouco me apercebi disso, era chamado "tratamento". Lembro-me sempre depois que se dava dinheiro (dez tostões?) no peditório para os tuberculosos.
Desse período nebuloso, de caras fechadas - que era terrível, a doença, nesse tempo em que se morria facilmente com ela -, recordo, ele ou alguém, ter trazido umas figurinhas de vidro (da Marinha Grande?), um elefante, um cão, um cavalo??? E um dos amigos que estava com ele ter feito uma miniatura de sofás, com braços de madeira e estofados. O sofá maior tinha uma gavetinha atrás. Há-de andar guardado por aí, quase sem côr, o que é um sinal, uma lembrança física, desses tempo.
E, essencialmente, o primeiro livro onde aprendi sozinha a ler:
A - águia
E - égua
I - igreja
O - ovo
U - uvas
Foi quando descobri o encanto da leitura!


1 comentário:

  1. Fiquei sem palavras... Só o teu esboço de sorriso que aparece nalgumas fotografias, me confortou um pouco.

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